QUEM VAI LEVAR O LIXO PRA FORA?

Poucas pessoas já ouviram falar do ornitorrinco. Ele é um bicho meio estranho, mas ao mesmo tempo tão interessante que, entre conhecê-lo e pesquisar mais sobre ele, bastou um passo.

O ornitorrinco tem um bico parecido com o do pato, as patas da frente em forma de asas, com esporões venenosos nas traseiras. Entre os seus dedos há uma membrana que empurra a água, sendo sua cauda longa e achatada como a de um peixe. Bota ovos e depois amamenta a cria. O bico do filhote tem dentes, que depois são perdidos e ele fica banguela. O ornitorrinco mora numa toca, cuja porta fica debaixo d’água, portanto é um exímio nadador, mas também se vira muito bem em terra. Quando foi apresentado pela primeira vez aos cientistas, empalhado, foi tido como um embuste.

Achei tudo isso o cúmulo do desajuste. Ameaçou ser peixe, quis ser uma ave e vestiu-se de mamífero. Acomodando-se bem às características de qualquer um desses grupos de classificação zoológica, criou um impasse e embaraçou os cientistas. Por fim, foi rotulado como mamífero, já que, para ser um desses, basta ter glândulas mamárias, e isso ele tem! Pronto, caso resolvido.

Bem, resolvido para a ciência. Em mim, entretanto, só causou uma explosão de imagens filosóficas. Alguém consegue imaginar que o ornitorrinco tenha algum problema de adaptação no reino animal ou que tenha desenvolvido um sentimento de rejeição, por não se enquadrar bem nos padrões? É claro que não! Os animais estão pouco ligando para a esquisitice alheia. Sua instintiva coerência emocional acaba resolvendo as diferenças na mesma medida em que elas aparecem. Não guardam ressentimento, rancor ou mágoa. Estão limpos.

Já o ser humano, o racional, aquele que pensa, planeja, projeta, que promove engenhocas e modernidades, que controla o espaço e o tempo, esse põe o lixo debaixo do tapete. Esconde de si mesmo suas próprias dificuldades e não admite quando quer chorar. Faz de conta que o mundo o reverencia e promove vingança àquele que se atreve contra ele.

Que tolo esse ser que acumula lixo por todo lado. Lixo rançoso, de coisas velhas, mal empilhadas e confusas. Ao invés de se entender, se arrumar e assear, o homem negligencia o interior e lustra o exterior.

Apresenta-se com brilhos, como se isso bastasse ao mundo, apontando o dedo para o outro que cometa a insensatez de não ser como ele. Então cria grupos de classificação, para que isso possa facilitar a discriminação. Assim, o homem é branco ou negro, pobre ou rico, é sulista ou nortista, macho ou fêmea, empregado ou empresário, homo ou heterossexual, católico ou protestante, azul ou verde. Ou não?

Por isso fico me perguntando sem parar, depois de conhecer o ornitorrinco, o que aconteceria com a humanidade se aparecesse entre nós um ser que não se encaixasse em nenhum desses rótulos. Um cara que não fosse nem uma coisa nem outra, em nenhum desses quesitos; que ele fosse coisa nenhuma! Deus meu, tenho medo de que só isso bastasse para que a humanidade se extinguisse.

 

Esquisito é o ornitorrinco? Vamos continuar pensando. Enquanto é filhote, o homem gosta muito de brincar, mas não tem muito tempo para isso. Precisa freqüentar a natação, o judô, o curso de inglês, a escola de informática e as aulas de reforço, porque não vai bem na escola. Parece que o professor é meio fraquinho, mas é porque a qualidade do ensino acabou caindo muito, devido à displicência do governo em relação à educação. Assim, o pequeno acaba crescendo ao lado do videogame, um aparelho que ele adota por companheiro nos poucos momentos em que se vê livre.

Depois de crescido, ainda tem vontade de brincar, mas aí não o faz porque não fica bem a um adulto. Escreve leis sem parar, porque se não houver papel escrito, não vale o combinado. Esconde-se da chuva em desabalada carreira, porque ficar molhado o faz perder a autoridade e ele precisa dela para pisar nos seus semelhantes menos poderosos.

Alimenta-se em poucos minutos, levando muito mais tempo para curar suas doenças. Para isso, ele precisa ficar numa casa comunitária cheia de outros homens vestidos de branco, que acabam ficando com o dinheiro que ele ganhou às custas de sua saúde.

Faz coisas inacreditáveis por causa de dinheiro, como esconder a verdade, vender sua opinião, deixar à míngua outras pessoas de sua própria espécie, cuja confiança ele conquistou com falsas promessas. Nem todos os homens fazem isso, mas dá para acreditar que exista um, somente um, que tenha essa coragem?

Talvez meu pensamento seja simplista demais e acabe nublando a realidade dos fatos, contudo, humanidade, não seria um bom começo jogar fora todo esse lixo? Começar a separar e ensacar a intolerância, o egoísmo, a má vontade, o preconceito, cada uma das mágoas entulhadas, rancores, ressentimento vingança ciúme incompreensão complexos arrogância culpa tristeza orgulho desânimo preguiça inveja solidão medo e mais e mais e mais?

Vamos revirar o tapete e descobrir o que tem lá?! Se é verdade que o nosso futuro depende de um momento de decisão, o melhor não seria ficar, a partir de agora, mais leve e limpo? Aí, quem sabe, vamos poder colocar a porta da nossa toca debaixo d’água, retirar o veneno dos esporões e viver felizes para sempre.